terça-feira, 8 de março de 2011

Potestates presut demones


"May your glass be ever full.
May the roof over your head be always strong.
And may you be in heaven
half an hour before the devil knows you’re dead."

Bênção Tradicional Irlandesa


Provindos dos mais díspares cantos do mundo geográfico e cultural de cada época e, em última análise, dos cantos mais recônditos da psique humana e da sua constante necessidade de materializar os seus próprios medos, retirando-os de si e remetendo-os para um exterior de menor desconforto, os demónios assumiram funções relativamente comuns e familiares sob a égide da religiosidade cristã mediévica. Já as suas formas, os seus comportamentos e as suas "aplicações práticas" - como terapia preventiva e, sendo assim, como complemento da terapia ministrada pelos santos das mais diversas invocações - variaram no tempo, no espaço e na disposição imaginativa de cada um. Assim, os escultores, entalhadores, pintores e iluminadores (iluminator e miniator, para não ferir susceptibilidades artísticas, defuntas é certo, mas merecedoras de respeito histórico...) dessa autêntica Era de Medievalidade, encravada entre tempos de "iluminação intelectual", representaram os seus demónios numa miríade de actividades mefistofélicas: tentando, atormentando, punindo, torturando, gozando e glosando, ora em clara desvantagem perante as forças do bem, ora levando a melhor à monotonia das virtudes e dos virtuosos. Em comum mantêm, para além da sobranceria e da maldade intrínseca, a grosseria, a fealdade e o carácter grotesco do seu aspecto e dos seus gestos. Adeptos habituais da forma híbrida, os seres demoníacos que atormentavam o cristão medieval oscilavam quase sempre entre o antropormorfismo deformado de uma humanidade decaída, o carácter reptilíneo e serpentiforme da tentadora edénica, rapidamente metamorfoseada em Víbora e Dragão, e os atributos caprinos das entidades silvestres de um paganismo de matriz clássica que, também ele, recorria ao hibridismo como forma de relegar o medo e a transgressão do moralmente aceitável para as margens do psicológico e do quotidiano.

Um ponto assente, pelo menos em contexto eclesiástico, era a predilecção dos demónios pelos interstícios entre a terra e o céu, percorrido pelas almas recém-falecidas no momento imediatamente seguinte à morte. Aqui, neste espaço intermédio, domínio dos marginalizados e decaídos anjos rebeldes, começava o festim. Conforme citado por Michael Moore ("Demons and the battle for souls at Cluny", artigo disponível em http://www.medievalists.net/2010/01/11/demons-and-the-battle-for-souls-at-cluny/):

"As intermediary spirits, demons lived in and dominated the intermediate zone of air between earth and heaven (Van den Born 1966-1969; Teyssèdre 1985: 173). The souls of the dead had to cross these empty spaces of air and wind, haunted by demons, if they hoped to reach the celestial spheres. Often the final, definitive struggle with demons took place at the deathbed."

Mas, para dar seguimento ao banquete, muitos eram os que se atreviam a penetrar no mundo dos homens e aí, o divertimento fazia-se sobretudo à custa dos próprios religiosos, sujeitos a frequentes aparições e tormentos na solidão da sua cela ou nas longas horas passadas no scriptorium (e escusado seria lembrar os ataques de nervos provocados pelo famoso Titivilus aos monges copistas...). Ainda no mundo palpável dos vivos, o diabólico e o demoníaco assumiam interessantes metamorfoses numa espécie de inversão de papéis: os próprios humanos assumiam o aspecto e o desbocamento dos demónios para, ao colocar-se em pé de igualdade, se tornarem imunes aos seus efeitos. Máscaras e disfarces, barulho e gritos guturais, tresloucamento e fuga ao socialmente imposto e aceite eram, assim, em determinadas alturas, parte de autências performances de alteridade e apotropismo.


"O grande Dragão foi precipitado, a antiga Serpente, o Diabo, ou Satanás, como lhe chamam, o sedutor do mundo inteiro, foi precipitado na terra, juntamente com os seus anjos"
Apocalipse 12:9-10.



Pormenor de uma miniatura. Manuscrito proveniente de Paris, actualmente na British Library.



O "Demónio Juiz", entronizado como o Pantocrator, decidindo o destino final dos condenados. Entre a panóplia de pecados passíveis de punição, a queda em tentação, a luxúria e a traição são os mais apreciados do menu...



Sainte-Foy de Conques, detalhe do tímpano do Julgamento Final.



Nem Moisés e a sua ira pela permanência da idolatria, nem sequer a autoridade das Tábuas dos Mandamentos acalmam um demónio tresloucado, exemplo de tudo o que não se deve ser. Pelo menos, não em Vézelay...



Pormenor de um capitel do interior da igreja da Abadia de Vézelay (1120-1150)
(http://www.flickr.com/photos/jaufre-rudel/3846552736/)



Deus e o Diabo discutem Job. Palavras para quê? Para aturar um trocista destes é precisa uma certa paciência...


Bíblia em latim, datada da primeira metade do século XIII, proveniente de Oxford e actualmente conservada na Bodleian Library. Iluminada no estilo de - e talvez por - William de Brailes. MS. Lat. bib. e. 7. fol.168v.
(http://www.bodley.ox.ac.uk/dept/scwmss/wmss/medieval/jpegs/lat/bib/e/007/1500/00700651.jpg)




A aura difamatória dos demónios não impediu a divindade - ou Divina Justiça, como se lhe queira chamar - de os utilizar como uma espécie de corpo mercenário que, representando o mal supremo, pune paradoxalmente aqueles que ofendem o Bem e a Religião. Assim sendo, o Deão de Poitiers mal sabia o que o esperava quando se lembrou de destruir o altar sobre o qual o próprio São Bernardo havia rezado Missa: ao invés de receber o reconforto espiritual da Extrema-unção, acabou por ser espancado e atormentado por um bando de demónios no seu próprio leito de morte.



Pormenor de um vitral da igreja de St. Mary, Shrewsbury.
(http://www.flickr.com/photos/22274117@N08/3151436086/in/set-72157611911914112/)




Porém, nem sempre a actividade de um demónio é tão bem sucedida e ocasiões há em que se impõe uma certa submissão...
Potestates presut demones
('o poder submete os demónios')



Pormenor de um vitral da igreja de Norfolk, Narborough, século XV.
(http://www.flickr.com/photos/norfolkodyssey/272424119/)




Outras vezes ainda, é necessário deixar uns demónios à solta para espantar outros...Método medievalíssimo.


Caretos de Podence.
(http://sarrabal.blogs.sapo.pt/99774.html?thread=156606)




sexta-feira, 16 de julho de 2010

The Green Man


Artwork by
Joana Antunes (carvão s/papel)


domingo, 18 de outubro de 2009

Giovannino de'Grassi e a marginalia sem margens



Pormenor da Letra N do Alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, 1390, fol. 30v


Giovannino de'Grassi, cuja actividade se encontra documentada desde 1389, terá nascido em Milão em torno de 1350.
Homem de vários ofícios, numa altura em que a especialização artística era uma necessidade absolutamente relativa, do ponto de vista do meio geográfico e social em que nos queiramos situar, Grassi foi arquitecto, escultor, pintor e miniaturista ou, de forma mais polida e cronologicamente correcta, miniatore.
Enquanto escultor e arquitecto, parti
cipou na construção do Duomo de Milão e da Catedral de Pavia.
Enquanto pintor e miniato
re, foi o responsável pela ilustração de cerca de 50 fólios do Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti, obra datada de cerca de 1370 e que se encontra agora na Biblioteca Nazionale di Firenze, e o criador de um Taccuino dei disegni, ou caderno de desenhos, que faz hoje as delícias dos apreciadores de um tardo-gótico italiano de pendor tão naturalista que chega a sugerir as alegrias artísticas de um Renascimento.


Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti
c. 1395, Biblioteca Nazionale, Firenze


Desenhos de animais, de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, fols. 21v e 22r


Ironias à parte, se este conjunto de desenhos - esboços feitos a partir do natural ou cópias de outras obras que
tinham como objectivo primordial servir de modelo, de repositório de formas e possibilidades iconográficas, de catálogo de acesso rápido para a realização de obras mais complexas - representam um elemento de singular espontaneidade na História da Arte, a sua importância aumenta exponencialmente se tomarmos consciência das possibilidades que ela - a obra de arte considerada como o todo que nunca foi - encerra para o desenvolvimento da própria historiografia artística. Com ela, levanta-se toda uma série de questões à partida insuspeitas.

I - A evolução do conceito de obra de arte enquanto objecto imbuído de uma importância, de um estatuto, de uma sacralidade particular.

Aqui trata-se simplesmente de um caderno de esboços, um catálogo onde se retiravam figuras que eram repetidas, por vezes mimeticamente decalcadas, em obras que, essas sim, eram já tidas como "obras de arte". O estatuto que hoje concedemos ao Taccuino estará, muito provavelmente, longe de ser aquele que o próprio autor lhe atribuiu. Não constituía uma obra de arte como um todo, nem os seus desenhos constituiriam obras de arte por si só. Isto não significa que, mesmo no século XIV, os esboços de Grassi não fossem admirados e considerados como desenhos de grande qualidade - tanto o foram que acabaram por ser recopiados ao longo do tempo, aliás, era para isso que serviam. Isto significa, sim, que lhes faltava o carácter oficial com que as obras a que serviam de fonte iconográfica se revestiam, pela sua dimensão, pela sua função, pelo carácter da própria encomenda.


Taccuino dei disegni, c. 1390


II - A ténue mas efectiva linha de separação entre uma arte oficial e uma arte marginal.

Esta linha, que se estabelece mais através da delimitação de espaços simbólico do que propriamente de espaços físicos, é passível de uma exemplificação clara e simples: embora o Taccuino de Giovannino de'Grassi não inclua figuras religiosas, o seu "par" mais famoso, o livro de Villard de Honnecourt oferece-nos algumas, entre as quais um Cristo em pose de bênção e uma semi-esboçada Virgem com o Menino. Ora, é bem conhecido o poder da Imagem na experiência religiosa, não só na durante a época medieval como ao longo de toda a História. O contacto com o transcendente, que é imaterial e invisível exige um medium que o potencie, um elemento físico, visível e palpável que active a crença, e eventualmente a fé, e que permita que o pensamento transponha as barreiras do concreto para um mundo que pertence, em última análise, aos domínios da sensação e do imaginário.
Ora, as imagens rapidamente esboçadas por Villar de Honnecourt no seu caderno nada têm de sagrado ou de venerável. Misturam-se com desenhos de mobiliário litúrgico, com elementos de arquitectura, estão apenas parcialmente desenhados ou mesmo colocados de pernas para o ar. Se eventualmente transportadas para o espaço dignificante da página iluminada de uma Bíblia, da superfície pintada de um retábulo ou da parede de uma Igreja, ou até mesmo transformadas em esculturas, cujo poder tridimensional chegou tantas vezes para instigar temores iconoclastas, essas mesmas imagens passariam sem qualquer dificuldade a pertencer à esfera
do sagrado, do religioso, talvez mesmo do litúrgico, e, por extensão (porque não são poucas as vezes em que ambas as esferas se misturam) da obra de arte. No entanto, o que encontramos nos cadernos de Villard de Honnecourt e Giovannino de'Grassi não passou, durante muito tempo, de exercícios de artista, mais do que obras de arte em si. Não é a posição que ocupam na folha de pergaminho que lhes confere qualquer estatuto, é a posição que ocupam na dinâmica da criação artística que as afasta do carácter oficial cuja ausência parece marcar esse fenómeno de aparente espontaneidade que é a marginalia.


Desenhos de Villard de Honnecourt
Album de Villard de Honnecourt, c. 1230, Bibliothèque Nationale de France


III - A absurda mas tantas vezes necessária tendência para delimitar tempos artísticos, usando como limes o naturalismo e o realismo.

Ninguém, por mais imune que esteja às artificiais delimitações que a historiografia artística do século XIX impôs ao complexo fluir das culturas artísticas do passado, espera encontrar, numa obra pictórica do século XIV, um naturalismo tão fotográfico quanto o de Grassi. Sem qualquer preconceito, é necessário admitir que em determinadas épocas prevaleceram determinadas formas de ver e representar o mundo, que correspondem a opções estéticas muito particulares, tendendo ora para uma maior fidelização à realidade e à natureza das coisas (por mais inconstantes e elusivas que estas possam ser) ora para uma maior extrapolação dessa realidade, seja através da estilização, como da abstractização, da economia de formas ou do exagero das mesmas. Sendo assim, a estética comummente associada ao século XIV europeu não é, de todo, a que Grassi nos oferece no seu Taccuino. Isto tem levado a uma tendência bastante hesitante na caracterização da obra e do autor, que por todo o lado se descreve como uma espécie de tardo-gótico do qual sempre se salienta um admirável naturalismo que, sem dúvida alguma, pisca o olho às opções estéticas de um Renascimento que foi precoce na Itália.


Taccuino dei disegni, c. 1390

Ora, nem o Renascimento foi precoce na Itália e tardio em todos os outros sítios, nem o naturalismo de Grassi é admirável no
contexto de um suposto e necessário rótulo de tardo-gótico. Partindo do princípio de que não se pode (ou por outra, não se deve) comparar o que não tem comparação, a cultura artística europeia não deveria ser avaliada estetica e muito menos qualitativamente a partir do caso italiano. Apesar de uma determinante matriz comum à Europa meridional, ocidental e centra - a matriz greco-romana - a Itália sempre revelou uma forma particular de concretização da experiência artística, sobretudo durante a dita época medieval.
Portanto, se o resto da Europa sucumbiu sem grandes resistências aos encantos de um Renascimento artístico, isto não significa que nos séculos anteriores a essa entrega voluntária se possa considerar determinados elementos da arte europeia como mais medievalizantes ou menos naturalistas. Não adianta por em competição uma longa época medieval genericamente europeia com uma época medieval italiana que, se chegou a acontecer, não durou tempo suficiente para permitir comparações algumas.

Parte do alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, c. 1390, fols. 29v, 30r e 30v



Resta, portanto, referir que este caderno consta de 62 folios, com um total de 77 desenhos e 24 letras do alfabeto engenhosamente compostas através da combinação de figuras humanas e animais que, pergunto-me se não farão parte de uma espécie de Taccuino universal da marginalia medieval, pelo simples facto de se assemelharem elas próprias a um mini-catálogo de figuras que tantas vezes encontramos nas margens - físicas, agora - dos manuscritos iluminados.


Pormenor de um dos fólios do Taccuino dei disegni, c. 1390

Para uma análise realmente consistente dos desenhos de Grassi:

http://www.spamula.net/blog/archives/000668.html

http://www.codicesillustres.com/catalogue/giovannino_de_grassi/

Recanati, Maria Grazia. A Fabulous Bestiary (traduzido do italiano por Judith Landry).



Para começar a esclarecer a questão do gótico internacional em Itália, talvez...

http://www.centroarte.com/gotico%20internazionale.htm