domingo, 18 de outubro de 2009

Giovannino de'Grassi e a marginalia sem margens



Pormenor da Letra N do Alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, 1390, fol. 30v


Giovannino de'Grassi, cuja actividade se encontra documentada desde 1389, terá nascido em Milão em torno de 1350.
Homem de vários ofícios, numa altura em que a especialização artística era uma necessidade absolutamente relativa, do ponto de vista do meio geográfico e social em que nos queiramos situar, Grassi foi arquitecto, escultor, pintor e miniaturista ou, de forma mais polida e cronologicamente correcta, miniatore.
Enquanto escultor e arquitecto, parti
cipou na construção do Duomo de Milão e da Catedral de Pavia.
Enquanto pintor e miniato
re, foi o responsável pela ilustração de cerca de 50 fólios do Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti, obra datada de cerca de 1370 e que se encontra agora na Biblioteca Nazionale di Firenze, e o criador de um Taccuino dei disegni, ou caderno de desenhos, que faz hoje as delícias dos apreciadores de um tardo-gótico italiano de pendor tão naturalista que chega a sugerir as alegrias artísticas de um Renascimento.


Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti
c. 1395, Biblioteca Nazionale, Firenze


Desenhos de animais, de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, fols. 21v e 22r


Ironias à parte, se este conjunto de desenhos - esboços feitos a partir do natural ou cópias de outras obras que
tinham como objectivo primordial servir de modelo, de repositório de formas e possibilidades iconográficas, de catálogo de acesso rápido para a realização de obras mais complexas - representam um elemento de singular espontaneidade na História da Arte, a sua importância aumenta exponencialmente se tomarmos consciência das possibilidades que ela - a obra de arte considerada como o todo que nunca foi - encerra para o desenvolvimento da própria historiografia artística. Com ela, levanta-se toda uma série de questões à partida insuspeitas.

I - A evolução do conceito de obra de arte enquanto objecto imbuído de uma importância, de um estatuto, de uma sacralidade particular.

Aqui trata-se simplesmente de um caderno de esboços, um catálogo onde se retiravam figuras que eram repetidas, por vezes mimeticamente decalcadas, em obras que, essas sim, eram já tidas como "obras de arte". O estatuto que hoje concedemos ao Taccuino estará, muito provavelmente, longe de ser aquele que o próprio autor lhe atribuiu. Não constituía uma obra de arte como um todo, nem os seus desenhos constituiriam obras de arte por si só. Isto não significa que, mesmo no século XIV, os esboços de Grassi não fossem admirados e considerados como desenhos de grande qualidade - tanto o foram que acabaram por ser recopiados ao longo do tempo, aliás, era para isso que serviam. Isto significa, sim, que lhes faltava o carácter oficial com que as obras a que serviam de fonte iconográfica se revestiam, pela sua dimensão, pela sua função, pelo carácter da própria encomenda.


Taccuino dei disegni, c. 1390


II - A ténue mas efectiva linha de separação entre uma arte oficial e uma arte marginal.

Esta linha, que se estabelece mais através da delimitação de espaços simbólico do que propriamente de espaços físicos, é passível de uma exemplificação clara e simples: embora o Taccuino de Giovannino de'Grassi não inclua figuras religiosas, o seu "par" mais famoso, o livro de Villard de Honnecourt oferece-nos algumas, entre as quais um Cristo em pose de bênção e uma semi-esboçada Virgem com o Menino. Ora, é bem conhecido o poder da Imagem na experiência religiosa, não só na durante a época medieval como ao longo de toda a História. O contacto com o transcendente, que é imaterial e invisível exige um medium que o potencie, um elemento físico, visível e palpável que active a crença, e eventualmente a fé, e que permita que o pensamento transponha as barreiras do concreto para um mundo que pertence, em última análise, aos domínios da sensação e do imaginário.
Ora, as imagens rapidamente esboçadas por Villar de Honnecourt no seu caderno nada têm de sagrado ou de venerável. Misturam-se com desenhos de mobiliário litúrgico, com elementos de arquitectura, estão apenas parcialmente desenhados ou mesmo colocados de pernas para o ar. Se eventualmente transportadas para o espaço dignificante da página iluminada de uma Bíblia, da superfície pintada de um retábulo ou da parede de uma Igreja, ou até mesmo transformadas em esculturas, cujo poder tridimensional chegou tantas vezes para instigar temores iconoclastas, essas mesmas imagens passariam sem qualquer dificuldade a pertencer à esfera
do sagrado, do religioso, talvez mesmo do litúrgico, e, por extensão (porque não são poucas as vezes em que ambas as esferas se misturam) da obra de arte. No entanto, o que encontramos nos cadernos de Villard de Honnecourt e Giovannino de'Grassi não passou, durante muito tempo, de exercícios de artista, mais do que obras de arte em si. Não é a posição que ocupam na folha de pergaminho que lhes confere qualquer estatuto, é a posição que ocupam na dinâmica da criação artística que as afasta do carácter oficial cuja ausência parece marcar esse fenómeno de aparente espontaneidade que é a marginalia.


Desenhos de Villard de Honnecourt
Album de Villard de Honnecourt, c. 1230, Bibliothèque Nationale de France


III - A absurda mas tantas vezes necessária tendência para delimitar tempos artísticos, usando como limes o naturalismo e o realismo.

Ninguém, por mais imune que esteja às artificiais delimitações que a historiografia artística do século XIX impôs ao complexo fluir das culturas artísticas do passado, espera encontrar, numa obra pictórica do século XIV, um naturalismo tão fotográfico quanto o de Grassi. Sem qualquer preconceito, é necessário admitir que em determinadas épocas prevaleceram determinadas formas de ver e representar o mundo, que correspondem a opções estéticas muito particulares, tendendo ora para uma maior fidelização à realidade e à natureza das coisas (por mais inconstantes e elusivas que estas possam ser) ora para uma maior extrapolação dessa realidade, seja através da estilização, como da abstractização, da economia de formas ou do exagero das mesmas. Sendo assim, a estética comummente associada ao século XIV europeu não é, de todo, a que Grassi nos oferece no seu Taccuino. Isto tem levado a uma tendência bastante hesitante na caracterização da obra e do autor, que por todo o lado se descreve como uma espécie de tardo-gótico do qual sempre se salienta um admirável naturalismo que, sem dúvida alguma, pisca o olho às opções estéticas de um Renascimento que foi precoce na Itália.


Taccuino dei disegni, c. 1390

Ora, nem o Renascimento foi precoce na Itália e tardio em todos os outros sítios, nem o naturalismo de Grassi é admirável no
contexto de um suposto e necessário rótulo de tardo-gótico. Partindo do princípio de que não se pode (ou por outra, não se deve) comparar o que não tem comparação, a cultura artística europeia não deveria ser avaliada estetica e muito menos qualitativamente a partir do caso italiano. Apesar de uma determinante matriz comum à Europa meridional, ocidental e centra - a matriz greco-romana - a Itália sempre revelou uma forma particular de concretização da experiência artística, sobretudo durante a dita época medieval.
Portanto, se o resto da Europa sucumbiu sem grandes resistências aos encantos de um Renascimento artístico, isto não significa que nos séculos anteriores a essa entrega voluntária se possa considerar determinados elementos da arte europeia como mais medievalizantes ou menos naturalistas. Não adianta por em competição uma longa época medieval genericamente europeia com uma época medieval italiana que, se chegou a acontecer, não durou tempo suficiente para permitir comparações algumas.

Parte do alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, c. 1390, fols. 29v, 30r e 30v



Resta, portanto, referir que este caderno consta de 62 folios, com um total de 77 desenhos e 24 letras do alfabeto engenhosamente compostas através da combinação de figuras humanas e animais que, pergunto-me se não farão parte de uma espécie de Taccuino universal da marginalia medieval, pelo simples facto de se assemelharem elas próprias a um mini-catálogo de figuras que tantas vezes encontramos nas margens - físicas, agora - dos manuscritos iluminados.


Pormenor de um dos fólios do Taccuino dei disegni, c. 1390

Para uma análise realmente consistente dos desenhos de Grassi:

http://www.spamula.net/blog/archives/000668.html

http://www.codicesillustres.com/catalogue/giovannino_de_grassi/

Recanati, Maria Grazia. A Fabulous Bestiary (traduzido do italiano por Judith Landry).



Para começar a esclarecer a questão do gótico internacional em Itália, talvez...

http://www.centroarte.com/gotico%20internazionale.htm


terça-feira, 18 de agosto de 2009

Requiem æternam dona eis, Domine


Escultura tumular
Jean de la Huerta e Antoine le Moiturier, 1443-1457
Musée des Beaux-Arts de Dijon


Pausa para Requiem I.


Quando a Morte, essa velha perniciosa que nunca ninguém conseguiu manter na margem durante muito tempo - à excepção, talvez, de Matusalém, que a adiou até onde pode, e de Jesus Cristo, que fez questão de passar por ela para depois lhe por a vergonha na cara - insiste em se cruzar connosco mais vezes do que seria suposto e desejável, talvez seja hora de fazer uma pausa e de lhe dar atenção.

Justificar completamente Senhora e Soberana, não há tempo nem espaço que lhe nao conheça os vícios e a teimosia. Brincou com os deuses gregos que, a crer nos moldes católicos/cristãos em que ainda hoje assentam as nossas concepções de quase tudo, eram imortais mas não eternos; riu-se na cara dos deuses nórdicos, que nem sequer eram imortais e, sabe-se lá, se já não morreram todos no Ragnarok sem que ninguém desse por isso. Com os humanos, então, sempre fez o que quis. Desde aparecer sem ser convidada a fazer-se tardar quando todos a esperam, a menina leva o capricho a cúmulos irritantes, manipulando a credulidade dos pobres diabos que tudo fazem para desligar os interruptores da razao e acreditar que existe um Deus (ou uma Energia Divina, se o pobre diabo em questao tiver deixado algum interruptor ligado, pelo menos um) eminentemente Bom que ajuda uma Humanidade intrinsecamente Boa a cumprir um destino pervisivelmente Bom num mundo tendencialmente Bom. Outra coisa que ela muito aprecia, na sua excelência de modos de menina romântica, é ocultar a avidez predatória do seu corpo esquelético, sob a aparência inofensiva de uma leveza anorética. Faz-lhes crer, aos pobres diabos, que é de todas as forças, a mais sincera e a mais necessária: eufemiza-se em passagem, transformação, libertação, evolução. Aproxima-se do jovem pensativo só para o induzir à reflexão numa vida plena de sentido; sussura ao ouvido da futura viúva só para lhe lembrar do quão feliz é ao lado do marido;caminha vagarosamente ao lado do velho só para lhe mostrar como a vida valeu a pena e como ele é corajoso por já não ter medo de partir; vela o sono do doente moribundo só para ele saiba de que ela não vai permitir que se lhe prolongue o sofrimento; visita os enlutados só para lhes revelar que a sua perda não foi em vão, que os seus entes queridos não são corpos vulneráveis e decompostos, mas almas luminosas e bem-aventuradas que tiveram a sorte de conhecer os mistérios do além antes dos que ainda não partiram. A Senhora dos ardis sabe que pode jogar com certos trunfos. Curiosidade, credulidade, fé e sobretudo - oh, arma terrivelmente poderosa - saudade.

Qual o segredo para desarmar esta adversária presunçosa? Vejamos como é que o homem medieval, de todos os pobres diabos o mais escarnecido (sim, mesmo o homem medieval do século XVI...), resolveu a questão.

Segredo: Nenhum.
Possibilidades: indiferença, coragem e medo.
Decisão óbvia: misturar as três possibilidades de forma a transformá-las
numa simulação de segredo.



O mais antigo jacente representando um estado de semi-decomposição conservado na França. Jacente de Guillaume de Harcigny (1394), Musée de Laon.



O terceiro estado do corpo após a morte.
Jacente do cardeal Lagrange (1402), Avignon, Musée du Petit-Palais.



L'homme à moulons.
Jacente, século XVI, Boussu
(Bélgica)


Os "jacentes góticos repousam com os olhos abertos, esperando o chamamento das trompetas. Nenhum tormento os altera. Pertencem já à ordem do eterno. A morte apaga toda a imperfeição e rejuvenesce."
Émile Mâle, L'Art religieux da la fin du Moyen Âge, p.401


"Os defuntos adormecidos sobre as pesadas pedras tumulares - jóvens e belos - começam a alterar-se na segunda metade do século XIV. [...] A ideia de representar o corpo na sua putrefacção pertence a uma religiosidade mais severa. Corresponde ao Cristianismo ascético, temeroso da vida, hostil à beleza e à aventura..."
Jurgis Baltrusaitis, La Edad Media Fantastica, p.238, 242



A Dança da Morte Edição alemã da Crónica do Mundo de Hartman Schedel (Nuremberga, 1493) folio 261r, gravura atribuída a Michael Wolgemut.



Vanitas Gregor Erhart, c. 1500 Kunsthistorisches Museum, Viena



Vanitas
Cadeiral de Spitalkirche, Baden-Baden (Alemanha), 1512


sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Esfinge


Grego (transliteração: Sphinx, Phix)
Latim (Sphinx, Phix)



A Esfinge é uma das mais antigas figuras compósitas conhecidas da antiga Grécia, com nítidas influências egípcias e orientais. Trata-se de um monstro feminino com cabeça de mulher e corpo de leão alado, embora algumas variantes a mostrem sem asas ou com uma cabeça masculina e com barba ou ainda combinando outros elementos humanos, caninos ou bovinos.

Em Hesíodo, a monstruosa família da Esfinge inclui Equidna e Ortro, seus pais, e o Leão de Nemeia, seu irmão. Segundo outras versões, contudo, seria filha de Tífon e Quimera, o que mantêm a origem do seu hibridismo.


Esquerda: Esfinge em terracota encontrada em Murlo, Palácio de Poggio Civitate, c.589 a.C.

Museo Archeologico Nazionale, Fiorenza

Direita: Esfinge em mármore, coluna dos Naxos, Delfos, c. 570 a.C.

Museu Arqueológico de Delfos


Criatura cruel e caprichosa, a Esfinge matava todos os que por ela passavam, sob o pretexto de não conseguirem decifrar os seus enigmas. De acordo com os mitos, ela devorava os infelizes, o que só vem reforçar a sua desumanidade e afastar qualquer possibilidade de simpatia ou de identificação com o próprio homem: ela devora as suas vítimas com a sua parte humana, e não com a sua parte animal. Contudo, as diversas representações artísticas desta criatura não parecem sugerir a crueldade que transparece nos mitos. Aqui, ela surge frequentemente - pelo menos aos olhos da maioria - como um ser imponente, majestoso e vigilante, sempre atento no cimo da sua coluna.



Ânfora atribuída ao Pintor de Goltyr c. 560-505 a.C.

Tampa Museum of Art, Florida


A Esfinge teria sido enviada por Hera para castigar a cidade de Tebas pelo crime de Laio, que se apaixonara por Crisipo, filho de Pélops, e o raptara. Estabelecendo-se nas proximidades da cidade, ela assolava a região, devorando quem quer que passasse nas redondezas e que, obviamente, não conseguisse responder às suas enigmáticas questões. Somente Édipo foi capaz de as decifrar e, desesperada, a Esfinge suicidou-se, atirando-se de um rochedo.



Esquerda: Lekythos de figuras negras, c. 470 a.C.

Direita: Ânfora de figuras vermelhas, atribuída ao Pintor de Aquiles, c. 450-440 a.C.

Museum of Fine Arts, Boston


De acordo com outra versão, os Tebanos reuniam-se todos os dias na praça pública da cidade para tentar resolver em comum os enigmas da Esfinge, que todos os dias devorava um dos habitantes, que nunca alcançavam a resposta certa.

Figura mitológica e elemento iconográfico transversal à cultura artística das grandes civilizações da Antiguidade, desde Indiana à Assíria e, obviamente, à Egípcia, a Esfinge grega adquire um carácter particularmente dinâmico, quando comparada com as congéneres orientais e norte-africana.


Placa de marfim esculpida neo-assíria, séculos IX-VIII a.C.

Metropolitan Museum of Art, NY


Purushamriga, a Esfinge indiana.

Templo de Shri Varadaraja Perumal em Tribhuvana, Índia.


Imponentes, frequentemente hieráticas (embora não nunca desprovidas de expressividade) e sobretudo associadas à representação do poder soberano – simbologia que não faria sentido na Grécia clássica – as esfinges egípcias e assírias assumem frequentemente a forma de leões ou touros de corpos tensos e maciços, aos quais se assoma uma cabeça humana de clara associação à figura do rei ou do faraó. Andro-esfinge, crio-esfinge e hieraco-esfinge são variações do conhecido exemplo modular da esfinge egípcia, que se pode apresentar com uma cabeça humana, uma cabeça de carneiro ou ainda com cabeça de falcão. Já a Esfinge grega, possivelmente influenciada pelo modelo egípcio ou oriental, assumiu quase em definitivo o hibridismo entre o leão, a ave e o corpo feminino. Com uma presença mitológica claramente mais incisiva, a Esfinge teve na arte grega uma representação mais variada e dinâmica, moldando o seu aspecto (embora não os seus atributos físicos) e a sua linguagem corporal às diversas situações em que é representada.



Esquerda: Esfinge de mármore, c. 540 a.C., Museu da Acrópole, Atenas
Direita: Esfinge de mármore, c. 570 a.C., Metropolitan Museum of Art, NY


Receptáculo de um conhecimento que não suporta ver partilhado, a Esfinge é a senhora dos enigmas, um híbrido cruel pela sua própria condição não humana mas simultaneamente um híbrido soberano, impositivamente colocado no alto de uma coluna até à hora da orgulhosa rendição. Para os escritores, poetas e historiadores gregos, um monstro a colocar em necessário confronto com a superior força – física e intelectual – do herói. Para os artistas, uma figura a explorar no seu potencial simbólico e plástico, não tanto pela elasticidade das formas, como pela sua elegância.



Édipo e a Esfinge, vaso grego de c. 440 a.C. descoberto na Itália.