quarta-feira, 10 de junho de 2009

Górgonas


Monstros temíveis, causadores de temor em homens e deuses - com o pescoço protegido por escamas de dragão, grandes presas semelhantes às do javali e língua pendente numa boca sempre arreganhada, mãos de bronze e asas de ouro – as Górgonas eram criaturas de uma aparência impressionante. De ambos os lados do largo nariz, os seus olhos cintilantes petrificavam quem quer que os fitasse. As compridas tranças que lha caem sobre os ombros e as costas assemelham-se frequentemente às ondulantes serpentes, que surgem depois na égide de Atena.




Medusa e Pégaso, placa apotropaica de terracota, c. 625-600 a. C., Museu Arqueológico Regional de Siracusa




A extrema frontalidade é a principal característica visual das Górgonas, cujo nome deriva precisamente de gorgos – assustador, terrífico, aterrador. Já os detalhes da sua aparência física parecem ter sido deixados à inventiva imaginação do artista grego que, pese embora a sua ligação ao cânone e ao belo idealizado, tinha nestas “margens” temáticas liberdade suficiente para criar imagens de criaturas híbridas, representadas de forma expressiva e extremamente viva. A Górgona, esculpida ou pintada, surge-nos sempre numa correria veloz, assustando e troçando de quem quer que se cruze no seu caminho.



Dinos do Pintor da Górgona (pormenor), c. 580 a.C, Museu do Louvre





Górgona de bronze, c. 540 a.C.



A esta dinâmica versão de corpo inteiro, o gorgoneion, a face da Górgona representada de frente, com todas as suas características de velocidade, violência e tensão explosiva concentradas na expressão do rosto – versão que ganha especial concretização a partir do momento em que se cristaliza a morte de Medusa e a utilização da sua cabeça como troféu e arma letal. Seja qual for a metamorfose que assuma, a verdade é que as Górgonas foram dos elementos demoníacos mais populares dos princípios da arte grega. De facto, elas parecem ser uma invenção eminentemente grega, embora denunciem uma inspiração parcial em protótipos de génios e deuses Egípcios e Orientais, como Humbaba, Bes e Hathor, por exemplo.





Banquete e gorgoneion, taça de vinho ateniense, século VI a. C.




Ânfora de figuras negras, atribuída ao tipo de Nicosthenes ou ao Pintor BMN, c. 525-475 a. C., Museu do Louvre





Gorgoneion etrusco, Museu de Orvieto



Na mitologia grega, a Górgonas eram apenas três monstros, Esteno, Euríale e Medusa, todas filhas de Fórcis e Ceto, que habitavam no Extremo Ocidente, próximo do reino dos mortos e do país das Hespérides.

A mais famosa das três, e a única mortal, era Medusa, a quem o corajoso Posídon se uniu e de cuja união surgiram, mais tarde, Crisaor e Pégaso.

Por ordem de Polidectes, tirano de Sérifo, ou por sugestão de Atena, Perseu parte para o Ocidente com o intuito de matar Medusa. Munido de umas sandálias aladas, oferta de Hermes, e de um escudo de bronze polido, que o protegia do olhar petrificante da Górgona, ele surpreende-a durante o sono e corta-lhe a cabeça. Do pescoço ensanguentado saíram os filhos de Posídon: Pégaso, o maravilhoso cavalo alado e Crisaor, o “homem da espada de ouro”. O sangue que daí jorrou foi aproveitado por Perseu, que utilizou o da veia esquerda como veneno mortal e o da veia direita como remédio capaz de ressuscitar os mortos. A cabeça foi concedida a Atena que a colocou no seu escudo ou no centro da sua égide, onde os olhos da Górgona continuavam a petrificar os inimigos da deusa.




Perseu e a Górgona Medusa, métopa em calcário, templo de Selinus, Sicília século VI a.C.



A deusa Atena com a cabeça da Górgona Medusa, ânfora ática de figuras vermelhas, c. 525 a. C.


Inevitável será a comparação com as expressões medievais de faces grotescas, mais ou menos ameaçadoras e quase sempre provocadoras, quase passíveis de delimitação numa série de grupos - mouth-pullers, tongue-stickers, grimacing faces – todos eles carentes de uma correcta versão para um léxico português ainda por estabelecer. A função claramente apotropaica do gorgoneion grego parece ter-se mantido quase inalterada em muitas destas imagens de faces grotescas que proliferaram na arte do ocidente durante toda a época medieval e moderna. A necessidade fundamental de dar expressão aos medos e, simultaneamente, ridicularizá-los e afastá-los – necessidade que faz parte de um padrão comum de comportamento humano perante o medo e o desconhecido – valida a correspondência destas expressões tão díspares no tempo mas tão coerentes na forma como se manifestam.




Expressões grotescas nas misericórdias dos cadeirais de Münster (Ulm) 1469-1474 e Martinikerk (Bolsward) 1480-99.




Numa das três entradas ocidentais de Notre-Dame de Paris, um demónio hermafrodita, numa expressão grotescamente vitoriosa, senta-se sobre um papa, um cardeal e um rei.