quarta-feira, 27 de maio de 2009

A criação de um Imaginário Marginal - o legado Grego

A presença de criaturas híbridas, mistura mais ou menos aberrante de partes humanas e animais, é um factor recorrente em todas as mitologias - o que varia, para além da situação de cada uma, é a intensidade com que elas surgem. Na mitologia nórdica, por exemplo, que esperaríamos mais rude ou mais bestializada, seja ela Celta ou Escandinava, raramente surgem criaturas híbridas. A transferência de atributos de animais para os heróis ou para os deuses é frequente, mas a fusão é rara.
A questão da motivação da presença de tantos híbridos na mitologia e no imaginário gregos só pode ser parcialmente respondida. Primeiro, há que reconhecer que nem o homem grego era só racionalidade, nem o seu corpus mitológico uma colecção de histórias e figuras sem sentido. Ou seja, como muitos dos mitos gregos acabam por ser uma forma extremamente inteligente e arguta de referir, exemplificar ou contar alguma coisa, também o homem procurava neles alguma da fantasia e da irracionalidade que sempre fascinou todos os homens e todas as épocas.




Depois, impõe-se a preponderância (importante mas não determinante) da influência de um Próximo Oriente e sobretudo de culturas como a egípcia ou a mesopotâmica, cujas formas artísticas e mitológicas deixaram um rasto de figuras híbridas que dificilmente não identificaremos na Esfinge ou nos Grifos da Mitologia Grega.


Grifos contra Arismapes, cerâmica ática c. 370-360 a.C.

Outro dos factores a ter em conta será o carácter antropocêntrico da cultura Grega. Por muito peso que a religião e mitologia possam ter tido na sua vivência e na sua cultura, o homem grego vivia muito mais em função de si mesmo e da sua comunidade. Os deuses estavam simultaneamente presentes e distantes, para os venerar era necessários erguer-lhes estátuas e construir-lhes templos. E o Grego tomava o seu próprio corpo como medida para a idealização do corpo dos deuses. Desta forma, o corpo humano, educado e trabalhado desde a infância, é completo, racional, funcional, apto, harmonioso, perfeito e belo. Ou seja, é tudo o que o híbrido não é. Na sua indefinição, ele está incompleto, porque não é uma coisa nem outra, denotando a falta de racionalidade na sua formação e, logo, no seu comportamento. A sua funcionalidade e aptidão são o que mais o aproximam da forma humana, já que frequentemente o híbrido é dotado de força e agilidade, contudo falta-lhe harmonia, perfeição e beleza. Se o homem é kalos, o híbrido é forçosamente aischros. Se o homem é digno e nobre, o híbrido é necessariamente vil. Assim, surgem os híbridos com partes humanas e animais, quando o lado descontrolado do homem está envolvido, ou apenas com elementos de vários animais, quando não há uma ponta de humanidade que possa ser discernida. Vemos então como as sereias encarnam o encanto fatal das mulheres, que com as suas doces palavras fazem com que os homens percam a razão (algo semelhante à perdição total) e como os centauros encarnam o furor irracional dos homens, cujos desejos mais básicos nem sempre se podiam reprimir. A forma híbrida é, então, a que mais se apropria para a personificação do vício e da imperfeição, que um corpo humano jamais suportaria – por muito que os deuses errem, por muito que a sua dignidade pareça por vezes comprometida, nunca o seu comportamento se aproxima da irracionalidade, da brutalidade, da violência, da indefinição de um híbrido, ou se o faz, há sempre um qualquer motivo que o justifica. É neste contexto de excepção que surge a inusitada desumanidade de Apolo que castiga Mársias de uma forma brutal e aparentemente injustificada. Há que saber, contudo, que o deus da música e da poesia, o deus da luz e do Sol fora posto em causa - se Mársias tivesse ganho a disputa a ordem das coisas seria inevitavelmente alterada e o deus sofreria uma humilhação impensável. O sátiro merecia, então, um castigo exemplar…


Sátiros,
psykter ateniense descoberto no túmulo de Creveteri, Dúris, século V a.C

É assim que o híbrido, tomado como medida de todas as coisas vis e impróprias do comportamento humano, torna-se também uma forma aplicável à personificação de medos, perigos e fenómenos naturais, desde sempre remetidos para um contexto periférico, marginal em relação à forma humana e à forma divina.

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