Giovannino de'Grassi e a marginalia sem margens
Pormenor da Letra N do Alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, 1390, fol. 30v
Taccuino dei disegni, 1390, fol. 30v
Giovannino de'Grassi, cuja actividade se encontra documentada desde 1389, terá nascido em Milão em torno de 1350.
Homem de vários ofícios, numa altura em que a especialização artística era uma necessidade absolutamente relativa, do ponto de vista do meio geográfico e social em que nos queiramos situar, Grassi foi arquitecto, escultor, pintor e miniaturista ou, de forma mais polida e cronologicamente correcta, miniatore.
Enquanto escultor e arquitecto, participou na construção do Duomo de Milão e da Catedral de Pavia.
Enquanto pintor e miniatore, foi o responsável pela ilustração de cerca de 50 fólios do Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti, obra datada de cerca de 1370 e que se encontra agora na Biblioteca Nazionale di Firenze, e o criador de um Taccuino dei disegni, ou caderno de desenhos, que faz hoje as delícias dos apreciadores de um tardo-gótico italiano de pendor tão naturalista que chega a sugerir as alegrias artísticas de um Renascimento.
Homem de vários ofícios, numa altura em que a especialização artística era uma necessidade absolutamente relativa, do ponto de vista do meio geográfico e social em que nos queiramos situar, Grassi foi arquitecto, escultor, pintor e miniaturista ou, de forma mais polida e cronologicamente correcta, miniatore.
Enquanto escultor e arquitecto, participou na construção do Duomo de Milão e da Catedral de Pavia.
Enquanto pintor e miniatore, foi o responsável pela ilustração de cerca de 50 fólios do Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti, obra datada de cerca de 1370 e que se encontra agora na Biblioteca Nazionale di Firenze, e o criador de um Taccuino dei disegni, ou caderno de desenhos, que faz hoje as delícias dos apreciadores de um tardo-gótico italiano de pendor tão naturalista que chega a sugerir as alegrias artísticas de um Renascimento.
Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti
c. 1395, Biblioteca Nazionale, Firenze
c. 1395, Biblioteca Nazionale, Firenze
Ironias à parte, se este conjunto de desenhos - esboços feitos a partir do natural ou cópias de outras obras que
tinham como objectivo primordial servir de modelo, de repositório de formas e possibilidades iconográficas, de catálogo de acesso rápido para a realização de obras mais complexas - representam um elemento de singular espontaneidade na História da Arte, a sua importância aumenta exponencialmente se tomarmos consciência das possibilidades que ela - a obra de arte considerada como o todo que nunca foi - encerra para o desenvolvimento da própria historiografia artística. Com ela, levanta-se toda uma série de questões à partida insuspeitas.
I - A evolução do conceito de obra de arte enquanto objecto imbuído de uma importância, de um estatuto, de uma sacralidade particular.
Aqui trata-se simplesmente de um caderno de esboços, um catálogo onde se retiravam figuras que eram repetidas, por vezes mimeticamente decalcadas, em obras que, essas sim, eram já tidas como "obras de arte". O estatuto que hoje concedemos ao Taccuino estará, muito provavelmente, longe de ser aquele que o próprio autor lhe atribuiu. Não constituía uma obra de arte como um todo, nem os seus desenhos constituiriam obras de arte por si só. Isto não significa que, mesmo no século XIV, os esboços de Grassi não fossem admirados e considerados como desenhos de grande qualidade - tanto o foram que acabaram por ser recopiados ao longo do tempo, aliás, era para isso que serviam. Isto significa, sim, que lhes faltava o carácter oficial com que as obras a que serviam de fonte iconográfica se revestiam, pela sua dimensão, pela sua função, pelo carácter da própria encomenda.
II - A ténue mas efectiva linha de separação entre uma arte oficial e uma arte marginal.
Esta linha, que se estabelece mais através da delimitação de espaços simbólico do que propriamente de espaços físicos, é passível de uma exemplificação clara e simples: embora o Taccuino de Giovannino de'Grassi não inclua figuras religiosas, o seu "par" mais famoso, o livro de Villard de Honnecourt oferece-nos algumas, entre as quais um Cristo em pose de bênção e uma semi-esboçada Virgem com o Menino. Ora, é bem conhecido o poder da Imagem na experiência religiosa, não só na durante a época medieval como ao longo de toda a História. O contacto com o transcendente, que é imaterial e invisível exige um medium que o potencie, um elemento físico, visível e palpável que active a crença, e eventualmente a fé, e que permita que o pensamento transponha as barreiras do concreto para um mundo que pertence, em última análise, aos domínios da sensação e do imaginário.
Ora, as imagens rapidamente esboçadas por Villar de Honnecourt no seu caderno nada têm de sagrado ou de venerável. Misturam-se com desenhos de mobiliário litúrgico, com elementos de arquitectura, estão apenas parcialmente desenhados ou mesmo colocados de pernas para o ar. Se eventualmente transportadas para o espaço dignificante da página iluminada de uma Bíblia, da superfície pintada de um retábulo ou da parede de uma Igreja, ou até mesmo transformadas em esculturas, cujo poder tridimensional chegou tantas vezes para instigar temores iconoclastas, essas mesmas imagens passariam sem qualquer dificuldade a pertencer à esfera
do sagrado, do religioso, talvez mesmo do litúrgico, e, por extensão (porque não são poucas as vezes em que ambas as esferas se misturam) da obra de arte. No entanto, o que encontramos nos cadernos de Villard de Honnecourt e Giovannino de'Grassi não passou, durante muito tempo, de exercícios de artista, mais do que obras de arte em si. Não é a posição que ocupam na folha de pergaminho que lhes confere qualquer estatuto, é a posição que ocupam na dinâmica da criação artística que as afasta do carácter oficial cuja ausência parece marcar esse fenómeno de aparente espontaneidade que é a marginalia.
Ora, as imagens rapidamente esboçadas por Villar de Honnecourt no seu caderno nada têm de sagrado ou de venerável. Misturam-se com desenhos de mobiliário litúrgico, com elementos de arquitectura, estão apenas parcialmente desenhados ou mesmo colocados de pernas para o ar. Se eventualmente transportadas para o espaço dignificante da página iluminada de uma Bíblia, da superfície pintada de um retábulo ou da parede de uma Igreja, ou até mesmo transformadas em esculturas, cujo poder tridimensional chegou tantas vezes para instigar temores iconoclastas, essas mesmas imagens passariam sem qualquer dificuldade a pertencer à esfera
do sagrado, do religioso, talvez mesmo do litúrgico, e, por extensão (porque não são poucas as vezes em que ambas as esferas se misturam) da obra de arte. No entanto, o que encontramos nos cadernos de Villard de Honnecourt e Giovannino de'Grassi não passou, durante muito tempo, de exercícios de artista, mais do que obras de arte em si. Não é a posição que ocupam na folha de pergaminho que lhes confere qualquer estatuto, é a posição que ocupam na dinâmica da criação artística que as afasta do carácter oficial cuja ausência parece marcar esse fenómeno de aparente espontaneidade que é a marginalia.
Album de Villard de Honnecourt, c. 1230, Bibliothèque Nationale de France
Ninguém, por mais imune que esteja às artificiais delimitações que a historiografia artística do século XIX impôs ao complexo fluir das culturas artísticas do passado, espera encontrar, numa obra pictórica do século XIV, um naturalismo tão fotográfico quanto o de Grassi. Sem qualquer preconceito, é necessário admitir que em determinadas épocas prevaleceram determinadas formas de ver e representar o mundo, que correspondem a opções estéticas muito particulares, tendendo ora para uma maior fidelização à realidade e à natureza das coisas (por mais inconstantes e elusivas que estas possam ser) ora para uma maior extrapolação dessa realidade, seja através da estilização, como da abstractização, da economia de formas ou do exagero das mesmas. Sendo assim, a estética comummente associada ao século XIV europeu não é, de todo, a que Grassi nos oferece no seu Taccuino. Isto tem levado a uma tendência bastante hesitante na caracterização da obra e do autor, que por todo o lado se descreve como uma espécie de tardo-gótico do qual sempre se salienta um admirável naturalismo que, sem dúvida alguma, pisca o olho às opções estéticas de um Renascimento que foi precoce na Itália.
III - A absurda mas tantas vezes necessária tendência para delimitar tempos artísticos, usando como limes o naturalismo e o realismo.
Ninguém, por mais imune que esteja às artificiais delimitações que a historiografia artística do século XIX impôs ao complexo fluir das culturas artísticas do passado, espera encontrar, numa obra pictórica do século XIV, um naturalismo tão fotográfico quanto o de Grassi. Sem qualquer preconceito, é necessário admitir que em determinadas épocas prevaleceram determinadas formas de ver e representar o mundo, que correspondem a opções estéticas muito particulares, tendendo ora para uma maior fidelização à realidade e à natureza das coisas (por mais inconstantes e elusivas que estas possam ser) ora para uma maior extrapolação dessa realidade, seja através da estilização, como da abstractização, da economia de formas ou do exagero das mesmas. Sendo assim, a estética comummente associada ao século XIV europeu não é, de todo, a que Grassi nos oferece no seu Taccuino. Isto tem levado a uma tendência bastante hesitante na caracterização da obra e do autor, que por todo o lado se descreve como uma espécie de tardo-gótico do qual sempre se salienta um admirável naturalismo que, sem dúvida alguma, pisca o olho às opções estéticas de um Renascimento que foi precoce na Itália.
Taccuino dei disegni, c. 1390
Ora, nem o Renascimento foi precoce na Itália e tardio em todos os outros sítios, nem o naturalismo de Grassi é admirável no
contexto de um suposto e necessário rótulo de tardo-gótico. Partindo do princípio de que não se pode (ou por outra, não se deve) comparar o que não tem comparação, a cultura artística europeia não deveria ser avaliada estetica e muito menos qualitativamente a partir do caso italiano. Apesar de uma determinante matriz comum à Europa meridional, ocidental e centra - a matriz greco-romana - a Itália sempre revelou uma forma particular de concretização da experiência artística, sobretudo durante a dita época medieval.
Portanto, se o resto da Europa sucumbiu sem grandes resistências aos encantos de um Renascimento artístico, isto não significa que nos séculos anteriores a essa entrega voluntária se possa considerar determinados elementos da arte europeia como mais medievalizantes ou menos naturalistas. Não adianta por em competição uma longa época medieval genericamente europeia com uma época medieval italiana que, se chegou a acontecer, não durou tempo suficiente para permitir comparações algumas.
contexto de um suposto e necessário rótulo de tardo-gótico. Partindo do princípio de que não se pode (ou por outra, não se deve) comparar o que não tem comparação, a cultura artística europeia não deveria ser avaliada estetica e muito menos qualitativamente a partir do caso italiano. Apesar de uma determinante matriz comum à Europa meridional, ocidental e centra - a matriz greco-romana - a Itália sempre revelou uma forma particular de concretização da experiência artística, sobretudo durante a dita época medieval.
Portanto, se o resto da Europa sucumbiu sem grandes resistências aos encantos de um Renascimento artístico, isto não significa que nos séculos anteriores a essa entrega voluntária se possa considerar determinados elementos da arte europeia como mais medievalizantes ou menos naturalistas. Não adianta por em competição uma longa época medieval genericamente europeia com uma época medieval italiana que, se chegou a acontecer, não durou tempo suficiente para permitir comparações algumas.
Parte do alfabeto de Giovannino de'Grassi
Taccuino dei disegni, c. 1390, fols. 29v, 30r e 30v
Taccuino dei disegni, c. 1390, fols. 29v, 30r e 30v
Resta, portanto, referir que este caderno consta de 62 folios, com um total de 77 desenhos e 24 letras do alfabeto engenhosamente compostas através da combinação de figuras humanas e animais que, pergunto-me se não farão parte de uma espécie de Taccuino universal da marginalia medieval, pelo simples facto de se assemelharem elas próprias a um mini-catálogo de figuras que tantas vezes encontramos nas margens - físicas, agora - dos manuscritos iluminados.
Pormenor de um dos fólios do Taccuino dei disegni, c. 1390
Para uma análise realmente consistente dos desenhos de Grassi:
http://www.spamula.net/blog/archives/000668.html
http://www.codicesillustres.com/catalogue/giovannino_de_grassi/
Recanati, Maria Grazia. A Fabulous Bestiary (traduzido do italiano por Judith Landry).
Para começar a esclarecer a questão do gótico internacional em Itália, talvez...
http://www.centroarte.com/gotico%20internazionale.htm
http://www.spamula.net/blog/archives/000668.html
http://www.codicesillustres.com/catalogue/giovannino_de_grassi/
Recanati, Maria Grazia. A Fabulous Bestiary (traduzido do italiano por Judith Landry).
Para começar a esclarecer a questão do gótico internacional em Itália, talvez...
http://www.centroarte.com/gotico%20internazionale.htm
Não vejo nada de irritantemente opinativo... apenas opiniões bem fundamentadas. Tanto drama... e isto tudo para eu ler sobre a horrenda Idade Média ou seja lá qual for o termo correcto para esses tempos sombrios...
ResponderEliminarArmadilhas ardilosas para te atrairem ao belos séculos medievais, minha cara... Idade Média soa bem, soa a Tolkien e tudo, mas agora parece que é mais educado falar em Época Medieval. Enfim, eufemismos para nada...
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