terça-feira, 18 de agosto de 2009

Requiem æternam dona eis, Domine


Escultura tumular
Jean de la Huerta e Antoine le Moiturier, 1443-1457
Musée des Beaux-Arts de Dijon


Pausa para Requiem I.


Quando a Morte, essa velha perniciosa que nunca ninguém conseguiu manter na margem durante muito tempo - à excepção, talvez, de Matusalém, que a adiou até onde pode, e de Jesus Cristo, que fez questão de passar por ela para depois lhe por a vergonha na cara - insiste em se cruzar connosco mais vezes do que seria suposto e desejável, talvez seja hora de fazer uma pausa e de lhe dar atenção.

Justificar completamente Senhora e Soberana, não há tempo nem espaço que lhe nao conheça os vícios e a teimosia. Brincou com os deuses gregos que, a crer nos moldes católicos/cristãos em que ainda hoje assentam as nossas concepções de quase tudo, eram imortais mas não eternos; riu-se na cara dos deuses nórdicos, que nem sequer eram imortais e, sabe-se lá, se já não morreram todos no Ragnarok sem que ninguém desse por isso. Com os humanos, então, sempre fez o que quis. Desde aparecer sem ser convidada a fazer-se tardar quando todos a esperam, a menina leva o capricho a cúmulos irritantes, manipulando a credulidade dos pobres diabos que tudo fazem para desligar os interruptores da razao e acreditar que existe um Deus (ou uma Energia Divina, se o pobre diabo em questao tiver deixado algum interruptor ligado, pelo menos um) eminentemente Bom que ajuda uma Humanidade intrinsecamente Boa a cumprir um destino pervisivelmente Bom num mundo tendencialmente Bom. Outra coisa que ela muito aprecia, na sua excelência de modos de menina romântica, é ocultar a avidez predatória do seu corpo esquelético, sob a aparência inofensiva de uma leveza anorética. Faz-lhes crer, aos pobres diabos, que é de todas as forças, a mais sincera e a mais necessária: eufemiza-se em passagem, transformação, libertação, evolução. Aproxima-se do jovem pensativo só para o induzir à reflexão numa vida plena de sentido; sussura ao ouvido da futura viúva só para lhe lembrar do quão feliz é ao lado do marido;caminha vagarosamente ao lado do velho só para lhe mostrar como a vida valeu a pena e como ele é corajoso por já não ter medo de partir; vela o sono do doente moribundo só para ele saiba de que ela não vai permitir que se lhe prolongue o sofrimento; visita os enlutados só para lhes revelar que a sua perda não foi em vão, que os seus entes queridos não são corpos vulneráveis e decompostos, mas almas luminosas e bem-aventuradas que tiveram a sorte de conhecer os mistérios do além antes dos que ainda não partiram. A Senhora dos ardis sabe que pode jogar com certos trunfos. Curiosidade, credulidade, fé e sobretudo - oh, arma terrivelmente poderosa - saudade.

Qual o segredo para desarmar esta adversária presunçosa? Vejamos como é que o homem medieval, de todos os pobres diabos o mais escarnecido (sim, mesmo o homem medieval do século XVI...), resolveu a questão.

Segredo: Nenhum.
Possibilidades: indiferença, coragem e medo.
Decisão óbvia: misturar as três possibilidades de forma a transformá-las
numa simulação de segredo.



O mais antigo jacente representando um estado de semi-decomposição conservado na França. Jacente de Guillaume de Harcigny (1394), Musée de Laon.



O terceiro estado do corpo após a morte.
Jacente do cardeal Lagrange (1402), Avignon, Musée du Petit-Palais.



L'homme à moulons.
Jacente, século XVI, Boussu
(Bélgica)


Os "jacentes góticos repousam com os olhos abertos, esperando o chamamento das trompetas. Nenhum tormento os altera. Pertencem já à ordem do eterno. A morte apaga toda a imperfeição e rejuvenesce."
Émile Mâle, L'Art religieux da la fin du Moyen Âge, p.401


"Os defuntos adormecidos sobre as pesadas pedras tumulares - jóvens e belos - começam a alterar-se na segunda metade do século XIV. [...] A ideia de representar o corpo na sua putrefacção pertence a uma religiosidade mais severa. Corresponde ao Cristianismo ascético, temeroso da vida, hostil à beleza e à aventura..."
Jurgis Baltrusaitis, La Edad Media Fantastica, p.238, 242



A Dança da Morte Edição alemã da Crónica do Mundo de Hartman Schedel (Nuremberga, 1493) folio 261r, gravura atribuída a Michael Wolgemut.



Vanitas Gregor Erhart, c. 1500 Kunsthistorisches Museum, Viena



Vanitas
Cadeiral de Spitalkirche, Baden-Baden (Alemanha), 1512


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