Taccuino dei disegni, 1390, fol. 30v
Homem de vários ofícios, numa altura em que a especialização artística era uma necessidade absolutamente relativa, do ponto de vista do meio geográfico e social em que nos queiramos situar, Grassi foi arquitecto, escultor, pintor e miniaturista ou, de forma mais polida e cronologicamente correcta, miniatore.
Enquanto escultor e arquitecto, participou na construção do Duomo de Milão e da Catedral de Pavia.
Enquanto pintor e miniatore, foi o responsável pela ilustração de cerca de 50 fólios do Offiziolo de Gian Galeazzo Visconti, obra datada de cerca de 1370 e que se encontra agora na Biblioteca Nazionale di Firenze, e o criador de um Taccuino dei disegni, ou caderno de desenhos, que faz hoje as delícias dos apreciadores de um tardo-gótico italiano de pendor tão naturalista que chega a sugerir as alegrias artísticas de um Renascimento.
c. 1395, Biblioteca Nazionale, Firenze
Ora, as imagens rapidamente esboçadas por Villar de Honnecourt no seu caderno nada têm de sagrado ou de venerável. Misturam-se com desenhos de mobiliário litúrgico, com elementos de arquitectura, estão apenas parcialmente desenhados ou mesmo colocados de pernas para o ar. Se eventualmente transportadas para o espaço dignificante da página iluminada de uma Bíblia, da superfície pintada de um retábulo ou da parede de uma Igreja, ou até mesmo transformadas em esculturas, cujo poder tridimensional chegou tantas vezes para instigar temores iconoclastas, essas mesmas imagens passariam sem qualquer dificuldade a pertencer à esfera
do sagrado, do religioso, talvez mesmo do litúrgico, e, por extensão (porque não são poucas as vezes em que ambas as esferas se misturam) da obra de arte. No entanto, o que encontramos nos cadernos de Villard de Honnecourt e Giovannino de'Grassi não passou, durante muito tempo, de exercícios de artista, mais do que obras de arte em si. Não é a posição que ocupam na folha de pergaminho que lhes confere qualquer estatuto, é a posição que ocupam na dinâmica da criação artística que as afasta do carácter oficial cuja ausência parece marcar esse fenómeno de aparente espontaneidade que é a marginalia.
Ninguém, por mais imune que esteja às artificiais delimitações que a historiografia artística do século XIX impôs ao complexo fluir das culturas artísticas do passado, espera encontrar, numa obra pictórica do século XIV, um naturalismo tão fotográfico quanto o de Grassi. Sem qualquer preconceito, é necessário admitir que em determinadas épocas prevaleceram determinadas formas de ver e representar o mundo, que correspondem a opções estéticas muito particulares, tendendo ora para uma maior fidelização à realidade e à natureza das coisas (por mais inconstantes e elusivas que estas possam ser) ora para uma maior extrapolação dessa realidade, seja através da estilização, como da abstractização, da economia de formas ou do exagero das mesmas. Sendo assim, a estética comummente associada ao século XIV europeu não é, de todo, a que Grassi nos oferece no seu Taccuino. Isto tem levado a uma tendência bastante hesitante na caracterização da obra e do autor, que por todo o lado se descreve como uma espécie de tardo-gótico do qual sempre se salienta um admirável naturalismo que, sem dúvida alguma, pisca o olho às opções estéticas de um Renascimento que foi precoce na Itália.
contexto de um suposto e necessário rótulo de tardo-gótico. Partindo do princípio de que não se pode (ou por outra, não se deve) comparar o que não tem comparação, a cultura artística europeia não deveria ser avaliada estetica e muito menos qualitativamente a partir do caso italiano. Apesar de uma determinante matriz comum à Europa meridional, ocidental e centra - a matriz greco-romana - a Itália sempre revelou uma forma particular de concretização da experiência artística, sobretudo durante a dita época medieval.
Portanto, se o resto da Europa sucumbiu sem grandes resistências aos encantos de um Renascimento artístico, isto não significa que nos séculos anteriores a essa entrega voluntária se possa considerar determinados elementos da arte europeia como mais medievalizantes ou menos naturalistas. Não adianta por em competição uma longa época medieval genericamente europeia com uma época medieval italiana que, se chegou a acontecer, não durou tempo suficiente para permitir comparações algumas.
Taccuino dei disegni, c. 1390, fols. 29v, 30r e 30v
http://www.spamula.net/blog/archives/000668.html
http://www.codicesillustres.com/catalogue/giovannino_de_grassi/
Recanati, Maria Grazia. A Fabulous Bestiary (traduzido do italiano por Judith Landry).
Para começar a esclarecer a questão do gótico internacional em Itália, talvez...
http://www.centroarte.com/gotico%20internazionale.htm